Você se lembra da última vez que utilizou o aparelho celular para ligar para alguém? Provavelmente não. Mas já parou para pensar em quantos vídeos assiste todas as semanas? No mínimo, alguns por dia. Nossos hábitos de comunicação mudaram drasticamente nos últimos anos, com o aprimoramento de tecnologias que nos levaram a consumir cada vez mais dados. Hoje, os bytes que consumimos se traduzem em reuniões online, músicas, streaming de vídeos, games, armazenamento remoto, e essa lista só tende a crescer com a escalada da rede 5G e a ampliação do uso de IoT.
Além da diversificação dos meios de consumo de dados, ampliou-se também o acesso à rede. Analisando somente o mercado de dispositivos móveis, o número total de assinantes em todo o mundo atingiu 8,4 bilhões em 2022, com uma penetração de 106%, de acordo com o Ericsson Mobility Report[1], lançado no segundo trimestre de 2023. Isso significa mais celulares conectados do que indivíduos vivos, uma vez que o planeta atingiu 8 bilhões de habitantes em 15 de novembro de 2022, pelos números das Nações Unidas.
E esses indicadores representam apenas o mercado de dispositivos móveis, uma entre as diversas fatias do volume total de consumo de dados. Trazendo um olhar mais amplo para o tema, uma pesquisa realizada pela Statista estima que, em geral, 120 zettabytes de dados serão gerados em 2023, crescimento de 23% sobre o ano anterior, com expectativa de atingir 181 zettabytes até 2025[2].
Essa curva acentuada do consumo de dados reaqueceu o debate sobre a partilha de investimentos em infraestrutura de rede. O tema em si já tem mais de 30 anos, mas foi a partir de meados dos anos 2000 que ele passou a ecoar em escala global, centrado na discussão sobre a neutralidade de rede, assunto que discutiremos mais adiante, neste blog post.
A partir de 2022, um movimento similar, porém em contraponto à compreensão tradicional da neutralidade de rede, ganhou o nome de “Fair Share Proposal”, quando 13 das maiores empresas de telecomunicações da Europa se uniram para propor que os grandes conglomerados consumidores de dados também pagassem a conta da infraestrutura necessária para atender a demanda. Atualmente, a proposta está em debate na Comissão Europeia e levanta discussões de mercado e de governo. Este artigo visa explicar o que é o Fair Share e quais são os benefícios e as desvantagens dessa proposta.
O que é o Fair Share?
O conceito de Fair Share surgiu nos anos 1990 e envolveu, inicialmente, grandes operadores de internet europeus, pertencentes a associações como a ETNO (European Telecommunications Network Operators) e a GSMA (Global System for Mobile Communications Association). Esse modelo propõe que cobranças proporcionais sejam realizadas aos usuários com grande volume de tráfego (LTG, em inglês) de saída na internet e não somente ao usuário final que consome esses dados.
O mecanismo proposto pelos operadores é o chamado “Sending Party Network Pays” (SPNP), modelo segundo o qual a rede que origina o envio de dados (sejam esses dados um áudio, um arquivo de imagem ou um streaming de vídeo) deve pagar uma taxa para a rede de destino.
Benefícios do Fair Share
De acordo com os membros do Fair Share, 57% de todos os dados consumidos no mundo são em formato de vídeo e cinco empresas de tecnologia (big techs) no mundo fomentam mais de 50% deste consumo[3]. Dessa forma, a contribuição dos grandes utilizadores de redes (conhecidos como Over the Top ou OTT) constituiria uma remuneração pela performance necessária nas redes para que o conteúdo chegue aos usuários finais com qualidade adequada, já que os usuários pagariam hoje apenas pelo acesso aos serviços e não pela baixa latência demandada por esses serviços.
A partir desse desenho, as operadoras se veem como elo entre os LTG’s e os usuários finais. Sendo assim, elas deveriam compartilhar os custos de infraestrutura com os dois lados da cadeia de consumo, evitando onerar o usuário final com os custos em investimentos em infraestrutura de rede.
Muitos dos defensores de uma reforma legislativa europeia também a consideram uma ferramenta essencial para atingir os objetivos de conectividade do continente, até 2030[4], o que exige investimentos em infraestrutura de rede. Associações de operadores de internet e mesmo instituições governamentais temem que, com o tempo, as telcos se tornem gradativamente incapazes de aprimorar seus serviços, afetando a qualidade das redes. Com o compartilhamento do custo, esse risco seria mitigado.
Desvantagens do Fair Share
Imagine uma rede de distribuição de energia elétrica. Quer você adote o serviço da principal companhia da sua cidade, quer utilize fontes alternativas de energia, toda a eletricidade que chega até sua casa é distribuída indistintamente para todos os seus aparelhos. Sua geladeira, máquina de lavar, cafeteira elétrica, chuveiro e até mesmo o carregador do seu celular têm consumos diferentes, mas todos recebem a mesma energia. A companhia de energia não estabelece restrições sobre o uso de algum desses aparelhos, definindo, por exemplo, que você não pode utilizar seu chuveiro por ter um consumo muito alto, ou que terá que pagar uma taxa especial para carregar seu notebook.
De forma bastante resumida, esse é também o princípio da neutralidade de rede. Forjado pelo professor de Columbia Tim Wu em 2003, esse princípio fundamental nas discussões sobre governança de internet estabelece que provedores de serviços não devem discriminar, restringir ou privilegiar determinados pacotes de dados, garantindo os mesmos direitos de acesso e navegação para todos os usuários.
Dessa forma, a institucionalização do Fair Share ou de qualquer outra política que proponha cobranças diferentes para grandes consumidores de rede e largura de banda feriria diretamente o princípio da neutralidade de rede, e analistas apontam que isso abriria um precedente perigoso para o futuro da conectividade à internet.
Argumenta-se também que esses imensos volumes de dados não circulam gratuitamente pelas redes dos operadores de internet. De fato, o transporte de todo e qualquer dado enviado pelas OTTs, como os grandes serviços de streaming de vídeo, é pago pelos usuários finais que, por solicitarem o conteúdo, pagam pela sua transferência por meio das suas assinaturas de internet.
Dessa forma, uma interpretação possível seria a de que fazer com que as OTTs paguem pela utilização da rede de telecomunicações para enviar seus dados pode se tornar uma via para obter um duplo pagamento pelo mesmo serviço de transporte: os dois fins deste envio, OTT e usuário final, seriam cobrados pela realização da mesma transferência.
Como são feitos os investimentos em infraestrutura digital?
Infraestrutura digital e inovação andam lado a lado. O ecossistema de mercado é intrinsecamente complexo, requerendo altos investimentos na esfera digital para renovar continuamente os limites do que a tecnologia pode realizar. O objetivo por trás desses investimentos vai além do aprimoramento das capacidades tecnológicas existentes, visando adentrar novos territórios inexplorados, provocando uma evolução constante na expansão da internet.
No núcleo desse ecossistema, as operadoras de telecomunicações desempenham um papel vital. Elas investem não apenas na manutenção e melhoria das redes de telecomunicações existentes, mas também em inovações de redes de transporte, na implementação e ampliação de cabos submarinos e satélites, proporcionando uma conectividade cada vez mais abrangente, especialmente na última milha.
Por outro lado, as big techs e demais OTTs também concentram seus esforços em áreas fundamentais desse ecossistema. Seus investimentos normalmente são direcionados para aprimoramento e expansão de data centers, redes de long-haul (ex: cabos submarinos), segurança de dados, desenvolvimento de novos softwares e produtos digitais e, por fim, na produção e difusão de conteúdo, uma das principais demandas de usuários da internet no mundo todo. Sua existência, como parte vital desse ecossistema contribui para a contínua evolução do cenário digital como um todo. Pode-se afirmar assim que operadores de internet e big techs, embora com enfoques de investimento diferentes, mantém a engrenagem do avanço tecnológico rodando.
Relações comerciais entre telcos e “big techs”
As relações comerciais entre telcos e as big techs são tradicionalmente baseadas na ideia de que cada empresa ou entidade é responsável por sua própria infraestrutura e, consequentemente, deve arcar com os custos relacionados: um provedor de conteúdo, por exemplo, custeia a produção dos seus próprios serviços, bem como o seu roteamento através de seus data centers, redes, CDNs e quaisquer outros custos de tráfego até o ponto de entrega (ou ponto de interconexão) do serviço/sinal para a telco. Esta, por sua vez, se responsabiliza pelos custos da sua própria rede, incluindo o acesso até o cliente.
Dessa forma, a fronteira crítica do debate corrente é o ponto de interconexão entre big techs e telcos: no atual contexto, as partes normalmente negociam o preço de entrega do tráfego IP e, na falta de um acordo, a interconexão não ocorre. Neste ponto, algumas telcos alegam que é cada vez mais difícil recusar a interconexão em caso de negociações desfavoráveis, sendo muitas vezes forçadas a realizar o serviço por preços abaixo do custo e, em alguns casos, até gratuitamente, seja devido a regras locais específicas sobre a neutralidade da rede, seja para conseguir suportar a demanda gerada e entregar a qualidade requerida por seus clientes, e desta forma não perder esses clientes para provedores concorrentes.
Possíveis consequências de uma institucionalização do Fair Share
Embora uma institucionalização do Fair Share ou mesmo sua adoção informal como prática de mercado sejam ainda cenários hipotéticos na maior parte do mundo, algumas previsões já são feitas por importantes atores a favor ou contra a medida.
Por um lado, argumenta-se que os mercados de interconexão IP poderiam sofrer mudanças significativas: algumas OTTs contrárias ao Fair Share já declaram abertamente que iriam optar por não oferecer seus serviços em países e territórios em que a medida fosse aplicada, direcionando-os para o exterior ou até mesmo para uma centralização em “paraísos fiscais digitais” onde essa taxa não é aplicada.
Prática como essas resultariam em serviços digitais distantes dos usuários, comprometendo fatores de extrema importância como qualidade e segurança. Mais importante: exigiria investimentos sem precedente em capacidade de rede de longo alcance por parte das telcos, possivelmente inviabilizando a internet como a conhecemos hoje. Indo além, a institucionalização do Fair Share poderia forçar as big-techs a prover serviço de acesso, alterando as dinâmicas atuais do mercado.
Um exemplo desse impacto já é observável na Coreia do Sul, onde uma forma de regulação de Fair Share já está em vigor desde 2016, levando OTTs estrangeiras a optarem pelo peering no exterior, principalmente no Japão ou Hong Kong, e um preço insustentável para provedores operarem dentro da Coreia do Sul. O resultado? Menos serviços digitais disponíveis, menos inovação e menor qualidade de serviço.
Além disso, o estabelecimento de peering poderia se tornar mais complexo, devido às particularidades da contabilidade administrativa de tráfego inerente ao modelo de Fair Share, desestabilizando um mercado em que, geralmente, os contratos para troca de tráfego se estabelecem de maneira simples ou até verbal. As escolhas sobre modalidades de interconexão deixariam de ser exclusivamente técnicas, ou seja, motivadas por interesses comerciais, tecnológicos e de segurança, pois teriam que se adaptar a um possível regulamento do Fair Share. Isso poderia, entre outros efeitos, distorcer drasticamente a concorrência.
Entre as saídas possíveis, muitas vezes é sugerido que, a partir de uma institucionalização do Fair Share, se criem fundos específicos de investimento e inovação (com foco, por exemplo, em redes de fibra óptica e 5G) para o direcionamento dos recursos decorrentes de uma possível taxação. Ao redor do mundo, há diversas entidades comprometidas com a universalização do acesso a internet que poderiam ser beneficiadas por esses fundos, como o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações), que promove, no Brasil, “o estímulo à expansão, ao uso e à melhoria da qualidade das redes e dos serviços de telecomunicações, a redução das desigualdades regionais e o estímulo ao uso e ao desenvolvimento de novas tecnologias de conectividade para promoção do desenvolvimento econômico e social”.
Conclusões
Em suma, o Fair Share é ainda um tópico complexo e polêmico no panorama da governança da internet, existem argumentos válidos de ambos os lados dessa discussão. Por um lado, operadoras de telecomunicações contribuem significativamente para o desenvolvimento da infraestrutura essencial que permite a transferência de dados, um esforço de investimento significativo que alguns argumentam que deve ser compartilhado de maneira mais equitativa.
No entanto, existe o imperativo fundamental da neutralidade da rede que garante que todos os usuários - e por que não os provedores de serviços digitais - tenham acesso igual e não discriminatório à internet, um princípio que poderia ser violado pelos modelos pretendidos do Fair Share. Neste momento, o mais importante é encontrar um caminho que seja sustentável social e economicamente e que preserve a neutralidade da rede. E você, o que acha dessa discussão?
Referências
[1] Ericsson Mobility Report, 2023 | Ericsson
[2] Volume of data/information created, captured, copied, and consumed worldwide from 2010 to 2020, with forecasts from 2021 to 2025 | Statista
[3] Fair Share | Fair Share Initiative
[4] Europe’s Digital Decade: digital targets for 2030 | European Comission